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Exame Criminológico na Lei de Execução Penal: Evolução Legislativa, Jurisprudência e Desafios com a Lei 14.843/2024

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  • 15 de ago.
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Conforme disposto na exposição de motivos da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1983, item 29-30), o exame criminológico foi instituído com o intuito de conhecer fatores pessoais do preso, relacionados a inteligência, vida afetiva e os princípios morais, visando sua alocação correta no convívio carcerário.


Ao entrar em vigor, a LEP originalmente previa no artigo 112 e no parágrafo único correspondente, que a decisão que conceder a progressão de regime, cumprida a fração de 1/6, seria motivada e precedida do parecer da Comissão Técnica e do exame criminológico, quando necessário (BRASIL, 1984).

 

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão.
Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário. (BRASIL, 1984)

 

É importante destacar que o termo “precedida”, conforme entendimento deste subscritor, não significa que o exame criminológico deva ser elaborado apenas quando preenchido o requisito objetivo, como um obstáculo à progressão de regime.


Isso pois a ideia central do exame criminológico, conforme destacado no início do presente trabalho, seria a efetivação da individualização da pena, devendo ser realizado no início do cumprimento da reprimenda, interpretação do art. 8°, da LEP (BRASIL, 1984), in verbis:

 

Art. 8º O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução.
Parágrafo único. Ao exame de que trata este artigo poderá ser submetido o condenado ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semi-aberto. (BRASIL, 1984)

 

Notadamente, a lei deve respeitar a lógica; dessa forma, o exame criminológico deveria ser realizado no início do cumprimento da pena. Esse exame, conforme a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1983, item 34), tem como base o binômio delito-delinquente, e, com o exame já realizado, a Comissão Técnica ofereceria o parecer para fins de progressão de regime, cumprindo-se assim o princípio da eficiência.


Nesse sentido, leciona Valois (2021, p. 105), em sua obra Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional, ao afirmar que o exame criminológico “é relacionado ao delito (delito-delinquente), só pode ser um, único para cada crime, e não foi pensado para ser renovado em cada pedido de progressão de regime com o intuito de procrastinar o direito do apenado”.


Contudo, a história do exame criminológico sempre se mostrou como um obstáculo à progressão de regime, sendo determinada a submissão do sentenciado à referido exame apenas quando alcançado o requisito objetivo, ocasionando o excesso no cumprimento da pena em um sistema penitenciário reconhecidamente inconstitucional.

Referido posicionamento foi alterado pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que modificou o art. 112 da Lei de Execução Penal, retirando a então obrigatoriedade do exame criminológico (BRASIL, 2003).

 

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.  (BRASIL, 2003)         

 

Após a alteração trazida pela Lei nº 10.792/2003, a jurisprudência passou a admitir a possibilidade do exame criminológico em casos excepcionais, quando a decisão se fundamentar em fatos concretos ocorridos no cumprimento da pena, conforme enunciado da Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” (STJ, 2010).


Esse entendimento se manteve mesmo com as alterações trazidas pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que modificou o § 1º do art. 112 da Lei de Execução Penal, sem trazer novamente a obrigatoriedade do exame criminológico, conforme se extrai da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça após a vigência da referida lei (BRASIL, 2019).

 

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PEDIDO DE PROGRESSÃO DE REGIME. DETERMINAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE NOVO EXAME CRIMINOLÓGICO (AVALIAÇÃO COMPLEMENTAR), EM RAZÃO DA GRAVIDADE ABSTRATA DOS DELITOS, DA LONGA PENA A CUMPRIR E DO HISTÓRICO PRISIONAL DO APENADO . FALTA GRAVE REABILITADA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. SÚMULA N . 439 DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. [...] 3. A negativa do benefício com determinação de novo exame criminológico, com a participação de médico psiquiatra, baseada apenas na longa pena a cumprir e na natureza dos crimes praticados, não encontra amparo na jurisprudência desta Corte Superior, sedimentada no sentido de que sejam declinados elementos concretos, ocorridos durante o cumprimento da pena, que apontem desabono ou demérito do Apenado, para se aferir negativamente o requisito subjetivo para a progressão de regime, bem como a realização de exame criminológico . 4. Incidência da Súmula n. 439 desta Corte: "Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada". 5 . Agravo regimental desprovido. (STJ, 2023)

 

O tema, até então pacífico, retornou ao cerne de discussões doutrinárias com o advento da Lei nº 14.843, de 24 de abril de 2024, que novamente alterou o § 1º do art. 112 da Lei de Execução Penal, para determinar a obrigatoriedade do exame criminológico para fins de progressão de regime (BRASIL, 2024).

 

§ 1º Em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão.  (BRASIL, 2024).

 

Nota-se que referida alteração trouxe apenas a obrigatoriedade do exame criminológico, não fazendo menção ao parecer da Comissão Técnica de Classificação, conforme redação original.


A primeira problemática da nova legislação se deu pela sua aplicabilidade, uma vez que parte da doutrina e jurisprudência entenderam se tratar de uma norma processual, portanto, deveria ser aplicada imediatamente:

 

Agravo em execução penal – Progressão de Regime – Insurgência ministerial quanto à não realização do exame criminológico – Lei nº 14.843/2024 que conferiu nova redação ao art. 112, § 1º, e art. 114, inciso II, da LEP, e tornou obrigatória a realização de exame criminológico para fins de progressão de regime – Constitucionalidade da novidade legislativa – Observância do princípio da individualização da pena, dignidade da pessoa humana e garantia à segurança pública – Exame criminológico que se mostra mais eficaz para avaliar o comportamento psicossocial do reeducando e a assimilação da terapêutica penal – Norma processual com aplicação imediata – Tempus regit actum – Decisão prolatada após a entrada em vigor da Lei nº 14 .843/2024 – Precedentes – Circunstâncias do caso concreto que recomendavam a realização do exame – Necessidade de exame criminológico para analisar o preenchimento do requisito subjetivo – Manutenção do sentenciado no regime em que se encontra até a realização do exame – Recurso provido para determinar a realização de exame criminológico. (TJ-SP, 2024)

 

Com o devido respeito ao entendimento da decisão retromencionada, entende-se que a alteração trazida pela Lei nº 14.843/2024 constitui norma penal mais gravosa ao sentenciado, devendo ser aplicada apenas para fatos ocorridos após a sua vigência, conforme o art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e o art. 2º do Código Penal (BRASIL, 1940).

Nesse sentido, tem-se decisões do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir que a inovação trazida constitui novatio legis in pejus, portanto, não deve retroagir:

 

RECURSO EM HABEAS CORPUS. PROGRESSÃO DE REGIME. EXAME CRIMINOLÓGICO. LEI N . 14.843/2024. NOVATIO LEGIS IN PEJUS. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA . CASOS COMETIDOS SOB ÉGIDE DA LEI ANTERIOR. PRECEDENTES. 1. A exigência de realização de exame criminológico para toda e qualquer progressão de regime, nos termos da Lei n . 14/843/2024, constitui novatio legis in pejus, pois incrementa requisito, tornando mais difícil alcançar regimes prisionais menos gravosos à liberdade. 2. A retroatividade dessa norma se mostra inconstitucional, diante do art. 5º, XL, da Constituição Federal, e ilegal, nos termos do art . 2º do Código Penal. 3. No caso, todas as condenações do paciente são anteriores à Lei n. 14 .843/2024, não sendo aplicável a disposição legal em comento de forma retroativa. 4. Recurso em habeas corpus provido para afastar a aplicação do § 1º do art. 112 da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei n . 14.843/2024, determinando o retorno dos autos ao Juízo da execução para que prossiga na análise do pedido de progressão de regime. (STJ, 2024)

 

Referido posicionamento foi ratificado pelo Pretório Excelso no Ag.Reg. no Recurso Extraordinário 1.533.457 São Paulo, de relatoria do Ilmo. Min. Gilmar Mendes:

 

Direito Constitucional, Penal e Processual Penal. Agravo regimental no recurso extraordinário. Execução penal. Progressão de regime. Exame criminológico. Lei 14.843/2024. Irretroatividade. I. Caso em exame: 1. Agravo regimental interposto da decisão que negou seguimento a recurso extraordinário. 2. O recurso extraordinário foi interposto para impugnar acórdão do tribunal estadual que negou provimento ao agravo em execução penal deduzido pelo ora agravado. II. Questão em discussão: 3. Pretensão de aplicação retroativa da nova redação do art. 112, § 1º, da Lei de Execução Penal, inserida pela Lei 14.843/2024, para fins de progressão de regime. III. Razão de decidir: 4. Acórdão recorrido que se encontra em conformidade com a jurisprudência desta Suprema Corte, a qual veda a aplicação de lei penal mais gravosa inclusive em matéria relacionada à progressão de regime durante a execução da pena. 5. Precedentes. IV. Dispositivo: 6. Agravo regimental não provido 27/03/2025 com legislação citada:(TSC). (STF, 2025)

 

Ainda que assim não fosse, de acordo com o exposto anteriormente, o art. 8°, da Lei de Execução Penal, continua em vigor, isto posto, mesmo com a vigência da Lei 14.843/2024 o exame criminológico deve ser realizado no inicio do cumprimento da pena corporal, com o fim de individualizar a pena, estando previamente elaborado para que quando atingido o requisito objetivo, possa ser analisado pelo juiz da execução.


Concluindo, manter o preso em regime mais gravoso para que este seja submetido ao exame criminológico contraria a própria lógica da LEP, e a realidade tem nos mostrado que referido exame tem servido de mecanismo para dilatar o direito do sentenciado, se desvirtuando da efetivação do princípio da individualização da pena.


Passível portanto, de impetração de habeas corpus para cessar referida ilegalidade, ainda mais no sistema penitenciário brasileiro, pois já reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional, onde a prisão de qualquer cidadão, deveria ser considerada ilegal.

 


Dr. Felipe PedrosoOAB/SP 507.447

Advogado fundador.

Bacharel em Direito pela Universidade Nossa Senhora do Patrocínio.

Pós-graduado em Direito e Prática Penal e Processual Penal pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS).

Secretário da Comissão de Direito Criminal da OAB/Salto.

Coordenador de Ações Emergenciais da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/Salto.

Membro da Comissão de Direito Criminal da OAB/Sorocaba e da OAB São Paulo.

 

 

 

Referências Bibliográficas


BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera dispositivos da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.792.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Lei nº 14.843, de 24 de abril de 2024. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre o exame criminológico. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14843.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 14 ago. 2025.


BRASIL. Exposição de Motivos da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). Mensagem nº 242, de 1983, do Poder Executivo, acompanhada de Exposição de Motivos do Ministro da Justiça (Mensagem nº 213, de 9 de maio de 1983). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7210-11-julho-1984-356938-exposicaodemotivos-149285-pl.html. Acesso em: 15 ago. 2025.


STJ. Súmula 439: "Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada". Terceira Seção, julgado em 28 abr. 2010, DJe 13 maio 2010.


STJ. AgRg no HC 828.102/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 28 ago. 2023, DJe 30 ago. 2023.


TJ-SP. Agravo de Execução Penal nº 0008279-57.2024.8.26.0996, Comarca de Praia Grande, Rel. Des. André Carvalho e Silva de Almeida, 2ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 16 jul. 2024, publicado em 16 jul. 2024.


STJ. RHC 200.670/GO, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20 ago. 2024, DJe 23 ago. 2024.


STF. RE 1.533.457/SP, Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 17 mar. 2025, DJe 19 mar. 2025.


VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021.

 
 
 

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